Clint Eastwood, mas com dragões
Na tentativa de explicar o significado de Role Playing Game, RPG para os íntimos, uma versão em caixa de Dungeons & Dragons da década de 1990 comparava o jogo a uma brincadeira de bangue-bangue com regras. Essas regras serviriam para evitar brigas entre os participantes e discussões como quem “acertou o tiro” em quem, quem errou e quais seriam as chances de acerto e os riscos em uma manobra perigosa como ficar de pé sobre um cavalo a galope no mundo da imaginação.
A lógica era impecável e a descrição atendia ao objetivo, como provavelmente ainda atende. Ao mesmo tempo, o artifício carregava consigo duas camadas de anacronismo. Entre as crianças que gostavam de RPG de fantasia medieval, quantas esperariam uma referência de filmes de Velho Oeste em sua caixa especial ornada com um dragão vermelho na capa, perfeita para iniciantes? E entre os adultos que jogam RPG, quantos brincavam (ou brincam) de bangue-bangue? Mas esse aparente descolamento tem mais de RPG, fantasia medieval e referências correlatas do que uma parte dos puristas podem crer.
Em algumas regiões do Brasil, os jogadores de RPG desses tempos ainda viviam o rescaldo da lendária “geração xerox”, título que significa exatamente o que quer dizer. Nerds interessados em uma atividade de difícil alcance, lançando mão da pirataria para aumentar o número de praticantes e multiplicar as chances de sentar na mesa com suas coleções de dados esquisitos, prontos para enfrentar orcs, goblins e outras criaturas com espadas e magias (importante lembrar que o jogo Dungeons and Dragons foi lançado pela primeira vez na década de 1070, 20 anos antes dessa história).
Nessa realidade, um livro de regras mais adequado aos iniciados e com muito mais possibilidades e inovações que a caixa transformava-se, então, em uma fonte de conhecimento. Fonte mesmo, no sentido denotativo, que brota, que emana, que mata a sede! E seria preciso várias visitas à papelaria da esquina com seu séquito de amigos adoradores, estranha trupe, para garantir mais cópias, mais sessões, mais aventuras, mais personagens e, a médio e longo prazo, quiçá, mais grupos de RPG.
Esses livros apareciam no radar pelo boca a boca ou por um pequeno leque de revistas especializadas, e aterrissavam pela boa vontade de um pai ou uma mãe de alguém do grupo que fez uma viagem e trouxe o bem precioso na mala, ou de um irmão mais velho que morava fora, um primo de outro estado e, em casos mais raros, pelos correios. Em qualquer caso, o tomo de conhecimento secreto e sagrado com novos níveis, mais regras, listas de monstros, aventuras ou novos sistemas e universos, com vampiros e lobisomens, por exemplo, precisava percorrer um longo caminho até a periferia.
E é exatamente aí que o Observador, Beholder para os internos, se encontrava com Clint Eastwood em Por um Punhado de Dólares. Todo esse esforço exigia uma cadeia de conhecimentos e referências passados de pessoa para pessoa, e que depois seria acrescido de ideias próprias, novas referências e passado adiante. Muitas vezes, de alguém um pouco mais velho que recebeu aquele conhecimento de alguém também um pouco mais velho, de dentro ou de fora da família, em uma cadeia de incentivadores da imaginação. Gente que nem sempre pensava no bem que estava fazendo. Em alguns casos, o hábito do RPG encontrava solo fértil até mesmo em hábitos familiares.
Um avô leitor, por exemplo, poderia incutir o gosto nos netos. Nesse caso, alguém acabava aparecendo com um exemplar de O Hobbit, O Senhor dos Anéis, ou edições de quadrinhos de Conan ou de heróis da Marvel ou da DC e pronto, o mal estava feito. Ou um tio viciado em cinema e disposto a ensinar as maravilhas da sétima arte aos sobrinhos apresentava os episódios IV, V e VI de Star Wars ou o filme Excalibur, de 1981, e as obras primas do western, que também ganharam referências na literatura, e a chama pegava.
E até a admiração de um pai ou de uma mãe por Star Trek e suas complexidades já ajudaram a despertar essa vontade (estranha para alguns), de contar e viver histórias fantásticas, misturá-las, recriá-las até se deparar com algo totalmente original. Todas essas cadeias, esses rios de criatividade, desaguavam nas sessões, com um grupo de amigos ao redor da mesa, risadas, gritaria, punhados de dados e fichas de personagens e suas histórias particulares feitas de referências compartilhadas.
O RPG era, e talvez ainda seja, muito maior que um conjunto de regras. Sob a sempre presente ameaça neopentecostal de um adulto interessado em sufocar tudo o que não compreende, as histórias construídas em conjunto sobre halfling, anões e outros seres e modificadas por planos mirabolantes, ideias erráticas e acertos e erros nos dados transbordava para o mundo real com casos repetidos como lembranças de algo que tivesse de fato acontecido, arrancando risadas e a vontade de jogar mais uma sessão ainda mais épica ou ainda mais cômica, au, ainda, tudo isso ao mesmo tempo.
Existia algo de punk nisso tudo. E talvez ainda exista. Como os fanzines e as fitas k7 regravadas à exaustão. E algo de bardo, como os cordéis repetidos e recontados sertão afora até virarem outros. Para gerações, o Role Playing Game foi fonte de conhecimento literário, cinematográfico, musical, oportunidade de pedaladas pela cidade, desculpa para formar grupos de trabalho na escola, a oportunidade do primeiro beijo ou até motivo para o fim de um relacionamento.
Por isso tudo, o RPG de fantasia acaba se tornando indissociável dos filmes de bangue-bangue e de muitas outras referências que, para um olhar desatento, possam parecer improváveis. Mas o jogo de interpretação de papéis tem ligação com uma cultura ainda mais antiga e que também está ligada à origem do teatro, do cinema e da fotografia: o hábito de compartilhar histórias ao redor das fogueiras e, com isso, crescer.



Nunca pensei que fosse ver, num texto sobre RPG, referências a Clint Eastwood e filmes de velho oeste! Hahhahaha! Mas, lendo o texto, é perfeitamente compreensível a origem e influência dos mais velhos (nossos "eldar", sejam pais, tios ou irmãos, até amigos mais velhos) na composição dos gostos da cultura pop que, um pouquinho mais apurado e concentrado, se torna a mais plena vivência nerd. Não cheguei ao nível de "vício" e frequência nos RPGs, conheci somente o universo "Vampiro", que achava muito legal e prático por não ter tabuleiro! As regras eram simples e a jogabilidade era sensacional, bastava apenas ter alguém com a mínima habilidade e conhecimento para "mestrar".
O último quarto de anos do século XX realmente foi muito rico (e louco!) nessa explosão de cultura pop e suas adjacências. Muito legal o texto, Luiz. Mais que prazer em ler, e lembrar da adolescência, me deu foi uma vontade danada de fazer um live-action de novo.